Em artigo, Vinton Cerf, um dos pais da internet diz que conceituar a internet como direito nos faria valorizar as coisas erradas
SÃO PAULO – Uma das figuras fundamentais para a construção da internet da maneira como a conhecemos hoje é Vinton Gray Cerf, membro da IEEE e vice-presidente do Google desde 2005. Em um artigo publicado nesta quarta-feira, 4, pelo New York Times, o criador adjunto do padrão TCP/IP se esforçou para deixar um claro uma opinião que tende a aquecer um debate que já circula internacionalmente há algum tempo: a internet não deve ser considerada um direito humano.
A posição de Vint faz referência às atitudes de países (como Finlândia e França) e da ONU que classificaram o acesso à internet como um direito humano sob a justificativa de que estar online seria fundamental para a cidadania, assim como a liberdade de expressão. Em junho, a Organização das Nações Unidas declarou em um relatório oficialque a internet estava sob ataque de governos em quase todo o mundo e por isso deveria ser protegida. Para isso, declarou a internet um direito humano, o que geraria para um infrator – um país que barrasse a sua população de acessar a web, por exemplo – punições internacionais.
Vinton Cerf argumenta que não é o acesso à internet que deve ser protegida sob a tutela do Direito, pois se trata apenas um instrumento, um meio pelo qual as pessoas podem exercer seus direitos básicos, como o de acesso à informação e o de se expressar. Diz Cerf em seu artigo:
“A tecnologia é um meio que possibilita estes direitos, e não um direito em si. Existe um critério mais elevado para que alguma coisa seja considerada um direito humano. Em sentido amplo, ela deve ser uma daquelas coisas das quais nós, seres humanos, precisamos a fim de poder levar uma vida saudável, dotada de sentido, como uma existência sem tortura ou a liberdade de consciência.É um erro colocar determinada tecnologia nesta eminente categoria, porque ao longo do tempo acabaremos valorizando as coisas erradas.”
O atual executivo do Google argumenta que a própria ONU “admitia que a internet é valiosa como meio para alcançar um fim, e não um fim em si mesma”. Para ele, em vez de um direito humano, o acesso à internet poderia ser garantido sob o conceito de direito civil – como um serviço universal, ficando ao lado do serviço telefônico – o que, segundo ele, seria estabelecido por lei e, por isso, tutelado pelo Estado.
O coordenador adjunto do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio de Janeiro, Carlos Affonso, analisa que do texto de Cerf pode-se ter a impressão de que a internet deveria ser vista de um ponto de vista puramente técnico, ignorando assim a pluralidade de atores que participam desse ambiente como a sociedade civil, as empresas (enquanto usuárias da rede) e, principalmente, o teor político do debate sobre a garantia do acesso.
“A crítica dele é a de é a pessoa por trás da tecnologia que precisa ser tutelada, e não a tecnologia em si”, diz Affonso. “Mas perceber a internet apenas como uma tecnologia é uma visão que tira dela toda uma visão social e política que a própria engenharia da internet e seus aspectos técnicos carregam. É importante não levar o texto dele a um extremo e elevar o tema da tecnologia para além do ponto de vista técnico.”
No final de seu artigo, Cerf aponta como responsabilidade dos “criadores de tecnologia” em responder pelos “direitos humanos e civis”. “Neste contexto, os engenheiros não só têm a tremenda obrigação de conferir a capacidade aos usuários de usar a tecnologia, mas também a obrigação de garantir a segurança dos usuários”.
Para ele, os engenheiros – e nesse ponto ele invoca a associação à qual pertence, o Instituto dos Engenheiros Elétricos e Eletrônicos – deveriam ter consciência das “responsabilidades civis além da capacidade” dos engenheiros. “Aprimorar a Internet é apenas um meio, embora um meio importante, pelo qual é possível aprimorar a condição humana. Isto deve ser feito com a valorização dos direitos civis e humanos que devem ser protegidos – sem pretender que o acesso em si a esta tecnologia seja um direito.”
Engrossando o caldo O professor de Direito da FGV-RJ, Carlos Affonso, contrapõe a fala de Cerf lembrando que “a estrutura da internet – sendo uma rede descentralizada de redes são escolhas técnicas que formam uma tecnologia gerando um meio altamente político, com consequências sociais e econômicas graves.
“Em tempos de Primavera Árabe, quando você tem uma pessoa do calibre do Vint Cerf dizendo que a internet não é um direito humano poderia representar uma negativa para o tema. Mas não é isso. É preciso não reduzir o que ele escreveu e relacionar também com o que tem dito nos últimos anos”, pondera Affonso que lembra dos encontros internacionais de que participou com a presença de Vinton Cerf, como o realizado em Nairobi, no qual o papel dos direitos humanos na tecnologia foi alvo de debate.
No dia 14 de dezembro, Vinton Cerf enviou uma carta para o congressista americano Lamar Smith, membro do Comitê de Justiça do Congresso e autor da Stop Online Piracy Act, lei antipirataria online conhecido pela sigla S.O.P.A. No documento, o ex-membro da DARPA se mostra preocupado com as consequências da norma, diz que o bloqueio a sites era algo “problemático” e sugere inúmeras alternativas ao projeto. A lei “prejudicaria a arquitetura da internet e obstruiria o esforço de 15 anos pelos setores público e privado visando melhorar a segurança cibernética através da implementação do DNSSEC, um conjunto de extensões projetado para solucionar vulnerabilidades de segurança no DNS [Sistema de Nomes de Domínios].”
Por fim diz ter “preocupações sobre a eficácia e inteligência dessa legislação”.
Carlos Affonso questiona se o artigo feito para o NYT não faz parte da discussão sobre o S.O.P.A mesmo que não cite a lei. “Vint diz que internet é uma tecnologia, essa tecnologia é papel de técnicos e é necessário que não se polua o debate com questões políticas. É uma forma de dizer que os rumos da internet tomados por governos nos últimos anos podem comprometer a internet. O artigo do Vint que pode ser tomado como uma análise do aspecto político da internet pode ser visto pelo lado oposto: o recado ‘a movimentação política que interfira na tecnologia é uma decisão que pode reduzir direitos fundamentais’. Só não sei se a melhor resposta é colocar o aspecto técnico separado do política como ele fez.”
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